sábado

La fierté

"Pensa que está ao seu alcance ofender-me? Não sabe então com quem está a falar? Julga que a saliva envenenada de quinhentos dos homenzinhos seus amigos, amontoados uns contra os outros, conseguiria sequer babar os dedos dos meus augustos pés?"



Às vezes frequentava a sociedade

"Às vezes frequentava a sociedade, não por gosto, mas para obedecer às exigências da posição a que aspirava o marido. Sua voz e a perfeição de seu canto permitiam-lhe então recolher aplausos que quase sempre lisonjeiam uma mulher jovem: mas de que lhe serviam sucessos que ela não relacionava a sentimentos nem a esperanças?"


terça-feira

The 'fuck off' series


Tinha este post nos rascunhos desde 2015...

O homem solitário

"As observações e os encontros do homem solitário são a um tempo mais confusos e prementes do que os do homem mundano, os seus pensamentos mais graves, surpreendentes e nunca isentos de um traço de tristeza. Imagens e percepções, que um olhar, um sorriso, uma troca de impressões levariam a ignorar, ocupam-no sobremaneira, ganham profundidade no silêncio, ganham sentido, tornam-se vivência, aventura, sensação. A solidão é propícia ao original, ao estranhamento e ousadia do belo, à poesia. Mas gera também o perverso, o monstruoso, o absurdo e o ilícito."

 Rodney Smith

Obstáculos

"Ainda que em ponto pouco visível, Aschenbach dissera uma vez abertamente que tudo aquilo que é grande nasce como um desafio: nasce apesar de preocupações e sofrimento, pobreza, abandono, fraqueza do corpo, vícios, paixão e tantos outros obstáculos."



segunda-feira

Preconceitos em matéria de arte e beleza

"O rosto de uma mulher jovem tem a calma, o polimento, o frescor da superfície de um lago. A fisionomia das mulheres só começa aos trinta anos. Até essa idade o pintor só encontra em seus rostos o rosa e o branco, sorrisos e expressões que repetem um mesmo pensamento, pensamento de juventude e amor, pensamento uniforme e sem profundidade; mas, na velhice, tudo na mulher se exprimiu, as paixões se incrustaram em seu rosto; ela foi amante, esposa, mãe; as expressões mais violentas da alegria e da dor acabaram por caracterizar, torturar seus traços, imprimindo neles mil rugas, todas com uma linguagem;  e um rosto de mulher torna-se então sublime de horror, belo de melancolia, ou magnífico de calma; se é lícito prosseguir essa estranha metáfora, o lago seco deixa ver então os traços de todas as torrentes que o produziram; e o rosto envelhecido de mulher não pertence mais nem à sociedade, que, frívola, assusta-se ao perceber nele a destruição de todas as ideias de elegância a que está habituada, nem aos artistas vulgares, que nele nada descobrem, mas sim aos verdadeiros poetas, àqueles que têm o sentimento de um belo independente de todas as convenções sobre as quais repousam tantos preconceitos em matéria de arte e beleza."

Isabelle Huppert, aos 30, aos 40, aos que ela quiser (nesta foto deve ter 28)


sábado

O inferno dos vivos

 "- O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que já está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar."

domingo

Amava o mar por razões profundas

"Amava o mar por razões profundas: a necessidade de repouso do artista fatigado que tenta encontrar abrigo na vastidão não complexa para as muitas formas e caprichos da sua fantasia; uma inclinação, contrária ao seu trabalho e logo mais apetecível, para o desmedido, para o incomensurável e eterno, para o nada. Repousar na perfeição é o desejo de todos os que procuram a excelência; e não será o nada uma forma de perfeição?"


sábado

As pessoas da sociedade 2

"— Lamento este contratempo — disse-me o senhor de Charlus. — Argencourt, bem-nascido mas mal-educado, diplomata mais que medíocre, marido detestável e mulherengo, velhaco como um personagem de uma peça, é um daqueles homens incapazes de compreender mas muito capazes de destruir coisas verdadeiramente grandes. Espero que a nossa amizade o venha a ser, se um dia vier a criar-se, e que o senhor me dê a honra de a manter tanto como eu ao abrigo dos coices de um desses burros que, por desocupação, falta de jeito ou maldade, esmagam o que parecia feito para durar. Infelizmente é por esse molde que, na sua maioria, são feitas as pessoas da sociedade."




quarta-feira

Balzac queixando-se

"Mulheres, ideias, sentimentos, tudo se assemelha. Não há mais paixões, porque as individualidades desapareceram. As posições, os espíritos e as fortunas foram nivelados, e todos vestimos um traje negro como de luto pela França morta. Não amamos nossos iguais. Entre dois amantes, é preciso haver diferenças a apagar, distâncias a percorrer. Esse encanto do amor desapareceu em 1789! Nosso tédio, nossos costumes insípidos são o resultado do sistema político. Na Itália, pelo menos, tudo é bem marcado. As mulheres são ainda animais malfazejos, sereias perigosas, sem-razão, sem outra lógica que a de seus gostos, de seus apetites, e das quais devemos desconfiar como desconfiamos dos tigres..."

Esta ilustração chama-se Balzac. 

sexta-feira

Grisalho

  Recostado na cadeira, coberto pelo penteador, a cabeça entre as mãos do barbeiro tagarela, observava o reflexo atormentado que o espelho lhe devolvia. 
  «Grisalho», disse, contorcendo a boca.
  «Um pouco», respondeu o homem. «Culpa de algum desleixo, de uma indiferença pela aparência que é compreensível no caso de grandes personalidades, mas nem por isso mais desculpável, tanto mais que precisamente estas pessoas não são os melhores juízes para decidir da superioridade do que é natural em relação ao artificial. Se a sua oposição obstinada à arte da cosmética se estendesse, como se seguiria logicamente, ao cuidado dos seus dentes, provocariam um pequeno escândalo. Na verdade, somos tão velhos quanto velhos se sentem o nosso espírito, o nosso coração, e o cabelo grisalho é, em algumas circunstâncias, uma falsidade maior do que a sua correcção tão menosprezada. No seu caso, meu senhor, prevalece o direito à cor natural do cabelo. O senhor permite-me que lha restitua?»
  «Como é isso possível?», perguntou Aschenbach.
  O homem eloquente lavou-lhe então a cabeça com duas águas, uma clara e uma escura, e o cabelo tornou-se negro como fora na sua juventude. Encaracolou-o em melenas suaves com o ferro de frisar, recuou e deu os últimos retoques.
  «Agora falta só», disse ele, «refrescar um pouco a pele da face.»


Kirk Douglas daqui

sábado

Junky

"I knew that I did not want to go on taking junk. If I could have made a single decision, I would have decided no more junk ever. But when it came to the process of quitting, I did not have the drive. It gave me a terrible feeling of helplessness to watch myself break every schedule I set up as though I did not have control over my actions."

William S. Burroughs

terça-feira

No entanto, se eu insistisse...

"Mas a marquesa logo adotou aquele ar afetuoso sob o qual as mulheres protegem-se contra as interpretações da vaidade. Essa atitude exclui qualquer segunda intenção e controla, por assim dizer, o sentimento, temperando-o nas formas da polidez. As mulheres ficam então o tempo que quiserem nessa posição equívoca, como numa encruzilhada que conduz igualmente ao respeito, à indiferença, ao espanto ou à paixão. Somente aos trinta anos uma mulher pode conhecer os recursos de tal situação, nela sabendo rir, gracejar, enternecer-se sem comprometer-se. Possui então o tato necessário para fazer vibrar num homem todas as cordas sensíveis, e para estudar os sons que obtém. Seu silêncio é tão perigoso quanto sua falta. Jamais adivinharemos se, nessa idade, ela é sincera ou falsa, se está brincando ou sendo de boa-fé em suas confissões. Após terem-nos dado o direito de lutar com ela, de repente, por uma palavra, por um olhar, por um daqueles gestos cuja força lhes é conhecida, elas encerram o combate, nos abandonam, e ficam donas de nosso segredo, livres para nos imolar por um gracejo, livres para se ocupar de nós, igualmente protegidas por nossa fraqueza e por nossa força. Embora a marquesa se colocasse, nessa primeira visita, num terreno neutro, ela soube conservar uma alta dignidade de mulher. Seus sofrimentos secretos ficaram pairando acima de sua alegria artificial como uma nuvem leve que cobre imperfeitamente o sol. Vandenesse partiu após ter experimentado nesse encontro delícias desconhecidas; mas ficou convencido de que a marquesa era dessas mulheres cuja conquista custa demasiado caro para que se possa querer amá-las."


Não sei que imagem usar aqui, mas talvez um gif da Anna Karina fique bem com tudo.

Bem, bem!

"Bem, bem! pensou Aschenbach com a aprovação fria do especialista, com que os artistas por vezes tentam vestir o seu fascínio e arrebatamento perante uma obra-prima."


sexta-feira

In the midst of winter

"My dear,

In the midst of hate, I found there was, within me, an invincible love.
In the midst of tears, I found there was, within me, an invincible smile.
In the midst of chaos, I found there was, within me, an invincible calm.
I realized, through it all, that…
In the midst of winter, I found there was, within me, an invincible summer.
And that makes me happy. For it says that no matter how hard the world pushes against me, within me, there’s something stronger – something better, pushing right back.

Truly yours,
Albert Camus"


domingo

La mode

"Para o desespero das mulheres, sua apresentação era impecável, e todas invejaram-lhe o corte do vestido, a forma de um corpete cujo efeito foi atribuído ao génio de uma costureira desconhecida, pois as mulheres preferem acreditar na ciência dos vestidos do que na graça e na perfeição daquelas que sabem usá-los." 



Todas essas reflexões se aplicam à história secreta de Júlia

"Não é verdade que há muitos homens cuja nulidade profunda é um segredo para a maioria das pessoas que os conhecem? Um posto elevado, um ilustre nascimento, importantes funções, um certo verniz de polidez, uma grande reserva na conduta ou os prestígios da fortuna são, para eles, como guardas a impedir que as críticas penetrem até sua íntima existência. Essas pessoas assemelham-se aos reis cuja verdadeira estatura, o carácter e os costumes jamais podem ser nem bem conhecidos nem justamente apreciados, porque são vistos de muito longe ou de muito perto. Essas figuras de mérito factício interrogam em vez de falar, têm a arte de colocar os outros em cena para evitar exporem-se diante deles; depois, com grande habilidade, puxam cada um pelo fio de suas paixões ou de seus interesses, e jogam assim com homens que lhes são realmente superiores, transformando-os em marionetes e julgando-os pequenos por os terem rebaixado até eles. Obtêm então o triunfo natural de uma ideia mesquinha, mas fixa, sobre a mobilidade dos grandes pensamentos. Assim, para julgar essas mentes vazias e pesar seus valores negativos, o observador deve possuir um espírito mais sutil que superior, mais de paciência que de alcance de visão, mais de argúcia e tato que de elevação e grandeza nas ideias. Todavia, por mais habilidade que esses usurpadores demonstrem defendendo seus pontos fracos, lhes é muito difícil enganar suas mulheres, suas mães, seus filhos ou o amigo da casa; só que essas pessoas conservam quase sempre o segredo sobre algo que diz respeito, de certo modo, à honra comum, e com frequência até o ajudam a impor à sociedade. Se, graças a tais conspirações domésticas, muitos tolos são tidos por homens superiores, em compensação muitos homens superiores são tidos por tolos, de modo que o Estado social tem sempre a mesma massa de capacidades aparentes. Imagine-se agora o papel que deve desempenhar uma mulher de espírito e de sentimento na presença de um marido desse tipo: não veremos existências cheias de dor e abnegação cujos corações repletos de amor e delicadeza nada poderia recompensar neste mundo? Que surja uma mulher forte nessa horrível situação: ela libertar-se-á por um crime, como fez Catarina II, não obstante chamada a Grande. Mas, como nem todas as mulheres estão sentadas num trono, a maioria condena-se a infelicidades domésticas que, por serem obscuras, não são menos terríveis. As que buscam neste mundo consolos imediatos apenas substituem seus males por outros quando querem permanecer fiéis a seus deveres, ou cometem faltas se violam as leis em proveito de seus prazeres. Todas essas reflexões se aplicam à história secreta de Júlia."

sábado

Todos temos grandes pretensões à força de espírito

"Carlos de Vandenesse tinha pouco a lamentar, porém, em deixar Paris. As mulheres não produziam mais nenhuma impressão sobre ele, seja porque considerasse uma paixão verdadeira como algo absorvente demais na vida de um homem político, seja porque as mesquinhas ocupações de uma galanteria superficial parecessem-lhe demasiado vazias para uma alma forte. Todos temos grandes pretensões à força de espírito. Na França, nenhum homem, por medíocre que seja, admite ser tido simplesmente por espirituoso. Assim, Carlos, embora jovem (tinha apenas trinta anos), já havia filosoficamente se acostumado a ver ideias, resultados, meios, lá onde os homens de sua idade percebem sentimentos, prazeres e ilusões. Recalcava o calor e a exaltação natural dos jovens nas profundezas de sua alma que a natureza criara generosa. Procurava ser frio, calculista, empregar em boas maneiras, em formas amáveis, em artifícios de sedução, as riquezas morais que o acaso lhe dera; verdadeira tarefa de ambicioso; papel triste, empreendido com o objectivo de atingir o que hoje chamamos uma bela posição."


terça-feira


"Ao luar percebeu a figura de Arthur, de pé, a três passos dela, com os olhos fixos na sua sege. Seus olhares encontraram-se. A condessa recuou vivamente para o fundo do carro, mas com um sentimento de medo que a fez palpitar. Como a maioria das moças realmente inocentes e sem experiência, ela via uma falta no amor involuntariamente inspirado a um homem. Sentia um terror instintivo, provocado talvez pela consciência de sua fraqueza diante de tão audaciosa agressão. Uma das armas mais fortes do homem é esse poder terrível de assediar uma mulher cuja imaginação naturalmente sensível assusta-se ou ofende-se com uma perseguição. A condessa lembrou-se do conselho da tia e resolveu permanecer durante a viagem no fundo de sua sege, sem sair dali."

Imagem daqui

É um excelente médico, digo eu

"É o seu mal, a sua sobreactividade nervosa. Se eu soubesse a maneira de a curar dela, bem evitaria fazê-lo. Basta-me dominá-la. Estou a ver em cima da sua mesa uma obra de Bergotte. Se se curasse do seu nervosismo, deixaria de gostar dela. Ora, poderia eu sentir-me no direito de trocar as alegrias que ela dá por uma integridade nervosa totalmente incapaz de lhas proporcionar?"







sábado

Father daughter

   "– Pois bem, minha filha, escuta-me! As moças com frequência criam imagens nobres, deslumbrantes, figuras totalmente ideais, e forjam ideias quiméricas acerca dos homens, dos sentimentos, do mundo; depois atribuem inocentemente a um carácter as perfeições que sonharam, e entregam-se a isso; amam no homem que escolheram essa criatura imaginária; porém, mais tarde, quando não há mais tempo de livrar-se do infortúnio, a enganadora aparência que embelezaram, seu primeiro ídolo, transforma-se enfim num esqueleto odioso. Júlia, preferia saber-te apaixonada por um velho do que ver-te amando o coronel. Ah! se pudesses transportar-te dez anos adiante na vida, reconhecerias o valor da minha experiência. Conheço Vítor: sua alegria é uma alegria sem espírito, uma alegria de caserna; ele é perdulário e sem talento. É um desses homens que o céu criou para fazer digerir quatro refeições por dia, dormir, amar a primeira que aparece, e combater. Ele não entende a vida. Seu bom coração, pois ele tem bom coração, talvez o leve a dar seu dinheiro a um infeliz, a um companheiro; mas ele é negligente, mas ele não é dotado daquela delicadeza de coração que nos faz escravos da felicidade de uma mulher; mas ele é ignorante, egoísta... Há muitos mas."



quinta-feira

Ser uma grande senhora

"No campo, a senhora de Marsantes era adorada pelo bem que fazia, mas sobretudo porque a pureza de um sangue onde há várias gerações só se encontrava o que de maior existe na história da França retirara da sua maneira de ser tudo o que a gente do povo chama "maneiras" e lhe conferira a perfeita simplicidade. Não receava beijar uma pobre mulher infeliz, e dizia-lhe que fosse buscar um carro de lenha ao solar. Era, dizia-se, a perfeita cristã. Estava empenhada em que Robert fizesse um casamento colossalmente rico. Ser uma grande senhora é representar o papel de uma grande senhora, isto é, por um lado, representar a simplicidade. É uma representação que custa extremamente caro, tanto mais que a simplicidade só deslumbra se os outros souberem que quem representa poderia não ser simples, isto é, que é rico. Disseram-me mais tarde, quando contei que a tinha visto: «Deve ter notado que ela foi deslumbrante.» Mas a verdadeira beleza é tão especial, tão nova, que não a reconhecemos pela beleza. Nesse dia apenas pensei que ela tinha um nariz pequenino, uns olhos muito azuis, o pescoço comprido e um ar triste."


Esta não é a senhora de Marsantes mas encontrei imagem de uma tal Castiglione que serve os efeitos ilustrativos e é uma bela personagem, look at that!


E a gente fica com uma admiração pelas pessoas

Mas diz que a doença…
… me tornou mais alegre. É a primeira vez que eu estou a falar nisto. Se um dia for comigo à sala de quimioterapia do Hospital de Santa Maria, não vê uma pessoa a chorar. É um hospital do Estado, há pessoas pobres, mas as pessoas sorriem, dizem «boa tarde», conversam, têm esperança. Devem sofrer muito, mas não são tristes. Nunca ouvi uma queixa. Foi uma grande lição. Quando estava a fazer radioterapia, no primeiro cancro (aquilo é uma sala enorme com gente à espera), estava lá um homem, vindo da província. Naquela altura ainda os podiam trazer de ambulância, agora não podem porque as câmaras não têm dinheiro, e as pessoas morrem… Era um senhor de oitenta e tal anos, de fatinho de vir ao médico, de uma ladeia do Alentejo. O fato estava cheio de nódoas, muito velho, não tinha gravata, e quando chamavam o nome dele, avançava como um príncipe. E eu nunca vi uma gravata tão bonita como aquele que ele não tinha. E a gente fica com uma admiração pelas pessoas, pelos portugueses. As pessoas são extraordinárias. A coragem, a dignidade. Sentia-me rodeado de príncipes quando lá estava, e pensava: «Eu não chego aos calcanhares destes tipos.» Então, comecei a pensar que não podia esmorecer, nem que seja em nome desta dignidade, desta coragem. Quando lá vou, vejo pessoas que não conheço de parte alguma, pessoas que ficam tão contentes com uma palavra. Sabe, antes de ser operado da primeira vez (foi uma operação muito comprida, de bastantes horas, porque tiraram o intestino e também o apêndice, a vesícula, aquilo já tinha apanhado várias coisas, bexiga e por aí fora), eu estava na sala para entrar, na maca, à espera da anestesia final e, de repente, sinto que me estão a dar a mão. Era o cirurgião. Não imagina como foi importante para mim. Ele ficou de mão dada comigo até eu adormecer. E, então, pensei: «Bolas, a função da literatura é esta: estar ali com uma mão apertada na nossa.» Um bom livro é isso. É uma coisa que nos dá a mão. E é uma fonte de alegria, de prazer. Há uma frase do Faulkner de que gosto muito. É quando ele diz: «Descobri que escrever é uma coisa extremamente nobre, faz-nos levantar sobre as patas de trás, e projectar uma enorme sombra.» É tão bonito, isto. E tão verdadeiro. Quando nós lemos um escritor de que gostamos, um livro de que gostamos, é isto que a gente sente. Ou ouvimos um músico. Ou vemos um quadro. Quando eu vejo um quadro de Rothko fico logo mais importente. E é isso que a literatura me tem dado nestes últimos tempos. Depois da doença, esta frase do Faulkner começou a fazer muito sentido para mim. «Faz-nos levantar sobre as patas de trás, e projectar uma enorme sombra.» É preciso admirar os escritores, é preciso amá-los. Eu teria imensa dificuldade em fazer crítica, porque, acho que não era capaz de dizer mal de um livro. Porque nós nos confundimos com o livro. Porque nós escrevemos para ser amados.


 Imagem: intao

segunda-feira

Quem nunca

"Quem nunca teve de reprimir um arrepio fugaz, um pudor e uma angústia secretos, ao subir para uma gôndola pela primeira vez ou após prolongada ausência? Sempre igual desde os tempos das baladas, e negra como entre todas as coisas apenas os caixões o são, a estranha embarcação faz lembrar aventuras marginais e mudas entre os murmúrios da noite, faz lembrar a própria morte, ataúdes e ritos fúnebres, e a última viagem silenciosa."


domingo

Lydia Davis writes grief

   "Once she was gone, every memory was suddenly precious, even the bad ones, even the times I was irritated with her, or she was irritated with me. Then it seemed a luxury to be irritated.
   I did not want to share her, I did not want to hear a stranger say something about her, a minister in front of the congregation, or a friend of hers who would see her in a different way. To stay with her, in my mind, to remain with her, was not easy, since it was all in my mind, since she wasn’t really there, and for that, it had to be just the two of us, no one else. There would have been strangers at the funeral, people she knew but I didn’t know, or people I knew but didn’t like, people who had cared about her or had not cared about her but thought they should attend the funeral. But now I’m sorry, or rather, I’m sorry I couldn’t have done both — gone to the funeral and also stayed home to be with our mother and nurse my own grief and my own memories.
   Suddenly, after she was gone, things of hers became more valuable to me than they had been before — her letters, of course, though there weren’t many of them, but also things she had left behind in my house after her last visit, like her jacket, a dark blue windbreaker with some logo on it. And a detective novel I tried to read and couldn’t. A tub of frozen clams in the freezer, and a jar of tartar sauce, marked down, in the door of the fridge."
 
Max Dupain

sexta-feira

Nada há mais agradável que sofrer aborrecimentos por uma pessoa que valha a pena

  "Na escada, ouvi atrás de mim uma voz que me interpelava:
  — Então é assim que o senhor me espera.
  Era o senhor de Charlus.
  — Importa-se de andar alguns passos a pé? — disse-me secamente quando chegámos ao pátio. — Caminharemos até eu encontrar um fiacre que me convenha.
  — O senhor quer falar comigo?
  — Ah, aí está, efectivamente, tinha certas coisas para lhe dizer, mas não sei bem se o farei. É certo que acho que elas poderiam ser para si o ponto de partida de inapreciáveis vantagens. Mas entrevejo também que elas introduziriam na minha vida, na minha idade, em que se começa a dar importância ao sossego, muitas perdas de tempo, muitos incómodos de toda a ordem; ora, pergunto a mim mesmo se valerá a pena eu sujeitar-me a tantas perturbações por sua causa, e não tenho o prazer de o conhecer o suficiente para me decidir. Em Balbec achei-o bastante medíocre, mesmo descontando a estupidez inseparável do personagem «banhista» e do uso de uma coisa chamada «alpargatas». E aliás talvez o senhor não tenha daquilo que eu poderia fazer um desejo suficientemente grande para eu me dar a tantos aborrecimentos, porque, repito-lhe com toda a franqueza, meu caro senhor, para mim não podem deixar de ser (repetiu martelando as palavras com força) aborrecimentos.
  Protestei que então era melhor não pensar nisso. Esta ruptura de negociações não pareceu agradar-lhe.
  — Esta cortesia nada significa — disse-me num tom duro.
  — Nada há mais agradável que sofrer aborrecimentos por uma pessoa que valha a pena. Para os melhores de nós, o estudo das artes, o gosto pelas antiguidades, pelas colecções, pelos jardins, não passam de ersatz, de sucedâneos, de álibis. No fundo do nosso tonel, como Diógenes, pedimos um homem. Cultivamos as begónias e podamos os teixos à falta de melhor, porque os teixos e as begónias se submetem. Mas preferíamos dar o nosso tempo a um arbusto humano, se tivéssemos a certeza de que valia a pena. Toda a questão está aqui; o senhor deve conhecer-se um pouco. E acha que vale ou não a pena?"

Einstein incorporando o personagem «banhista»

quinta-feira

Basta que o homem precise dela

"Apetecia-me responder-lhe que nesse almoço ignominioso só se falara de Emerson, de Ibsen, de Tolstoi, e que a moça tinha feito um sermão a Robert para só beber água. Para tentar levar algum bálsamo a Robert, cujo orgulho julgava ferido, procurei desculpar a amante. Não sabia que naquele momento, apesar da sua cólera contra ela, era a si próprio que censurava. Mesmo nas querelas entre um homem bom e uma mulher má, e quando a razão está toda de um lado, acontece sempre que há uma ninharia qualquer que pode conferir à mulher a aparência de não estar errada num ponto. E como a mulher põe de lado todos os outros pontos, basta que o homem precise dela e esteja desmoralizado pela separação para que o seu enfraquecimento o torne escrupuloso, para se recordar das censuras absurdas que lhe foram feitas e perguntar a si mesmo se não terão algum fundamento."




sexta-feira

Los nerviosos

"A senhora pertence a essa família magnífica e lamentável que é o sal da terra. Tudo o que conhecemos de grande vem-nos dos nervosos. Foram eles e não os outros que fundaram as religiões e compuseram as obras-primas. Nunca o mundo virá a saber tudo o que lhes deve e, sobretudo, o que eles sofreram para lho dar. Nós apreciamos as músicas puras, os quadros belos, mil delicadezas, mas não sabemos o que elas custaram aos que as inventaram, em insónias, em lágrimas, em gargalhadas espasmódicas, em urticárias, em asmas, em epilepsias, numa angústia de morte que é pior que tudo isso e da qual, minha senhora, talvez tenha conhecimento — acrescentou ele sorrindo para a minha avó —, porque, confesse, quando eu cheguei não estava muito tranquila. Julgava-se doente, talvez perigosamente doente. Deus sabe de que enfermidade acreditava descobrir sintomas em si. E não estava enganada, tinha-os. O nervosismo é um imitador de génio. Não há doença que ele não falsifique maravilhosamente. Ele imita sem tirar nem pôr a dilatação dos dispépticos, os enjoos da gravidez, a arritmia do cardíaco, a febre do tuberculoso. Capaz de enganar o médico, como é que não havia de enganar o doente?"


segunda-feira

Compasso para nada

"Muitas vezes há que descer até às pessoas que vivem à custa de outras, homens ou mulheres, para termos de procurar o móbil da acção ou das palavras aparentemente mais inocentes no interesse, na necessidade de viver. Qual é o homem que não sabe, quando uma mulher a quem vai pagar lhe diz: «Não vamos falar de dinheiro», que esta frase deve ser contada, como se diz em música, como um «compasso para nada», e que, se mais tarde ela lhe declara: «Desgostaste-me muito, escondeste-me muitas vezes a verdade, estou farta», deve interpretar a declaração do seguinte modo: «Há um outro protector que lhe oferece mais?» E isto é apenas a linguagem de uma cocotte, bastante próxima das mulheres da sociedade."


quinta-feira

Bastou-me vê-la com os lírios

  "— Começou porque na véspera houve uma espécie de ensaio que era uma coisa linda! — continuou ironicamente a senhora de Guermantes. — Imaginem que ela dizia uma frase, ou nem sequer isso, um quarto de frase, e parava; não dizia mais nada, e olhem que não estou a exagerar, durante cinco minutos.
  — Ena, ena, ena! — exclamou o senhor de Argencourt.
  — Com toda a delicadeza deste mundo permiti-me insinuar que aquilo talvez fosse causar algum espanto. E ela respondeu-me textualmente: «É sempre preciso dizer uma coisa como se estivéssemos nós a compô-la.» Se pensarem bem, é monumental, esta resposta!
  — Mas eu julgava que ela não era má a dizer versos — disse um dos dois rapazes.
  — Ela nem sabe o que isso é — respondeu a senhora de Guermantes. — De resto, não precisei de a ouvir. Bastou-me vê-la com os lírios! Percebi logo que ela não tinha talento quando vi os lírios!"


"Mas, no segundo dia, tive de ir dormir ao hotel. E sabia adiantadamente que era fatal ir encontrar lá a tristeza. Esta era como um aroma irrespirável que, para mim, desde que nascera, qualquer quarto novo exalava, quero dizer, qualquer quarto: naquele onde habitualmente morava não estava presente, pois o meu pensamento permanecia noutro sítio e em seu lugar mandava apenas o hábito. Mas não podia encarregar este criado menos sensível de tratar das minhas coisas num lugar novo, aonde chegava antes dele, aonde chegava sozinho, onde tinha de pôr em contacto com as coisas aquele «Eu» que só reencontrava com anos de intervalo, mas sempre o mesmo, que não crescera desde Combray, desde a minha primeira chegada a Balbec, chorando, sem consolo possível, junto de uma mala desfeita."


James Hart Dyke

Onde não se caminha, mas onde se rola

"A frieza involuntária desta mulher contrasta com a sua paixão confessada e reage necessariamente sobre o amante mais apaixonado. Essas ideias, que muitas vezes flutuam como vapores em redor das almas, determinam nelas uma espécie de doença passageira. Na doce viagem que dois seres empreendem através das belas regiões do amor, esse momento é como uma charneca a atravessar, uma charneca sem estevas, alternadamente húmida e quente, cheia de areias ardentes e cortada de pântanos que leva aos risonhos maciços de verdura vestidos de rosas onde se expande o amor e o seu cortejo de prazeres sobre tapetes de fina verdura. Muitas vezes o homem espiritual encontra-se dotado de um riso estúpido que lhe serve de resposta a tudo. O seu espírito está como que adormecido sob a glacial compressão dos seus desejos. E não é impossível que dois seres igualmente belos, espirituais e apaixonados falem primeiro dos lugares-comuns mais idiotas, até que o acaso, uma palavra, o tremor dum certo olhar, a comunicação duma faísca, os faça encontrar a feliz transição que os leva à vereda florida onde não se caminha, mas onde se rola, sem contudo descer. Este estado de alma é proporcional à violência dos sentimentos."


Fotografia daqui

Ris demasiado alto e vão supor que almoçámos de mais

"— Cala-te, senão não digo mais nada. Ris demasiado alto e vão supor que almoçámos de mais. Na quinta-feira passada, eu passeava sobre o terraço dos Feuillants, sem pensar em nada. Mas ao chegar à grade da Rua Castiglione, por onde contava ir-me embora, encontrei-me frente a frente com uma mulher que, se não me saltou ao pescoço, foi dominada, suponho, menos por respeito humano do que por um desses espantos profundos que prendem os braços e as pernas, descem ao longo da espinha dorsal e param na planta dos pés para vos fixar ao solo. Eu produzi muitas vezes efeitos desse género, uma espécie de magnetismo animal que se torna muito poderoso quando as relações são respectivamente entrelaçadas. Mas, meu caro, não era nem uma estupefacção nem uma rapariga vulgar. Moralmente falando, o seu rosto parecia dizer: «O quê? Eis-te, meu ideal, ser dos meus pensamentos e dos meus sonhos ao deitar e ao acordar. Como é que estás aí? Porquê esta manhã? Por que não ontem? Toma-me, pertenço-te, etc.!» «Bom, dizia a mim mesmo, mais uma!» Examinei-a então. Ah, meu caro, fisicamente falando, a desconhecida é o ser mais adoravelmente mulher que eu encontrei até hoje. Ela pertence a essa variedade feminina a que os Romanos chamavam fulva flava — a mulher de fogo. Em primeiro lugar, o que me impressionou, aquilo que ainda me tem preso, são os seus olhos amarelos como os dos tigres: um amarelo de ouro que brilha, ouro vivo, de ouro que pensa, de ouro que ama e quer absolutamente vir para o nosso bolso. 
— Nem nós conhecemos outra coisa, meu caro! — gritou Paul. Ela vem algumas vezes aqui. É a Rapariga dos olhos de ouro. Demos-lhe esse nome. É uma jovem com cerca de vinte e dois anos que eu vi aqui no tempo dos Bourbons, acompanhada de uma mulher que vale cem mil vezes mais do que ela."

segunda-feira

terça-feira

Estas honestas pessoas

"Com efeito, os rapazes de Paris não se parecem com os rapazes de nenhuma outra cidade. Dividem-se em duas classes: o jovem que tem alguma coisa e o jovem que não tem nada, ou, melhor, o jovem que pensa e o jovem que gasta, mas, compreenda-se bem, trata-se aqui apenas desses indígenas que levam em Paris uma vida deliciosamente elegante. Existem ainda outros jovens, mas esses são crianças que só muito mais tarde percebem a existência parisiense e são enganados por ela. Não especulam e estudam; cavam, como dizem os outros. Vêem-se ainda, finalmente, certos rapazes que se dedicam a uma carreira e a seguem simplesmente. São um pouco como Emílio de Rousseau, a carne do cidadão, e nunca frequentam a sociedade. Os diplomatas chamam-lhes, impolidamente, ingénuos. Ingénuos ou não, eles aumentam o número dessas pessoas medíocres sob o peso das quais a França se curva. Estão sempre presentes, sempre prontos a estragar os negócios públicos ou particulares com a colher chata da mediocridade, vangloriando-se sempre da sua impotência a que eles chamam honradez e bons costumes. Esta espécie de «prémios de excelência» social infesta a administração, o exército, a magistratura, as câmaras e a corte. Eles diminuem e vulgarizam o país, e constituem, de qualquer maneira, no corpo político, uma lista que o sobrecarrega e o torna plácido. Estas honestas pessoas chamam aos homens de talento imorais ou patifes. Se estes patifes fazem pagar os seus serviços, ao menos servem realmente. Quanto aos outros, prejudicam e são respeitados pela multidão mas, felizmente para a França, a juventude elegante estigmatiza-os sem cessar com o nome de pacóvios."



Estes na imagem são os outros, "les deux espèces de jeunes gens qui mènent une vie élégante". Também escreve sobre eles a seguir mas têm de ler o livro para saber.

sábado

"O mar é o caminho para a minha casa"

É bonito. Mesmo quando a casa fica na República das Bananas.

Daqui: the one and only antologia do esquecimento

Nude Jennifer Lawrence for Vanity Fair March 2015


Go Jenny go
Daqui

Nailed it so good

"O enfado de uma existência vazia, só pode mesmo ser recompensado com uma alegoria de histórias vazias, onde a vida só tem sentido quando apanhada de quatro na cama tomando mil chibatadas antes de voltar ao vazio que a levou às peias. Amortizar assim a tarefa de pensar, com ações de não ter que pensar, tem sido o exasperado recurso dos que imaginam pensar demais. As pessoas não sabem o que é pensar, porque nunca viveram a consciência de pensar. Estando apenas atulhadas de insignificâncias, imaginam com isso estar a pensar em demasia. Cercados por entulhos de informações inúteis que as impedem de avaliar o pensamento com critérios de qualidade que se distingue da quantidade. Iludem-se com a ideia de que andam pensando além do suportável."

Jajajaja 

Mr. Grey will see you now

Fazer um doutoramento ou a revolução

   "— E tu? — perguntou-me, pegando-me pelo braço. — Tu quê, meu velho?
    — Eu, nada — respondi. — Eu, aqui, como tradutor na Unesco, em Paris.
   Hesitou um momento, receoso de que aquilo que me ia dizer pudesse magoar-me. Era uma pergunta que, sem dúvida, estava havia tempo a queimar-lhe a língua.
   — É isso que queres ser na vida? Nada mais que isso? Todos os que vêm para Paris aspiram a ser pintores, escritores, músicos, actores, encenadores de teatro, fazer um doutoramento ou a revolução. Tu só queres isso, viver em Paris? Nunca o engoli, velhote, confesso-te.
   — Bem sei que não. Mas é a pura verdade, Paúl. Em miúdo, queria ser diplomata, mas era só com o fito de me mandarem para Paris. É isso que quero: viver aqui. Achas pouco?"